Na primeira metade dos anos 70, uma patrulha do Exército fazia batidas de rotina no ramal rodoviário que ligava a outrora Vila de Repartimento a Tucuruí, quando eu e um amigo fomos parados: um sargento determinou que abríssemos as bagagens e jogássemos o conteúdo ao chão.
Eu não quis cumprir a determinação. O sargento perguntou-me o nome. Eu respondi. Ele acusou bonachão:
- Olhe tenente, é este o tal comunista de Tucuruí, que vive esculhambando o Exército e cuspindo no brasão!
Eu maldizia o Exército, que para mim simbolizava a ditadura, mas nunca cuspira nem em flâmula de São João.
De repente, fui violentamente ajoelhado. Ato contínuo senti um estampido, seguido de uma dor horrível nos ouvidos: eu era apresentado ao tal telefone, um golpe dado ao mesmo tempo, com as duas mãos em forma de concha, em cada uma das orelhas.
Meu rosto foi ao chão. Mãos me viraram o corpo e o pé do tenente pressionou-me o peito gritando se eu iria ou não abrir a mala.
Eu tentava articular a fala, em meio ao sangue misturado com poeira, quando um cabo interferiu por mim: era afilhado dos meus pais. Não foi atendido.
Fui amarrado e arremessado no caminhão. Ao me recompor, olhei ao redor. A carroceria estava cheia de pessoas em estado bem pior que o meu.
O comboio seguiu viagem. A cada parada, mais pessoas eram arremessadas para a carroceria.
Antes de chegarmos a Marabá, meu pai, que fora avisado pelo meu amigo, alcançou o comboio e o tenente que comandava o destacamento já recebera ordens do general para entregar-me a ele.
Mais tarde, soube que eu fora libertado por interferência da maçonaria, cujo Grão-Mestre, em Marabá, era amigo do meu pai.
O tenente mandou-me desamarrar, exortou-me aos meus deveres para com a pátria e a título de despedida deu-me uma tapa nas costas - que doeu quase tanto quanto o telefone.
A caminho de Tucuruí, eu e meu pai não trocamos palavras. Certa hora, ao virar-me a ele, vi o caminho de uma tímida lágrima que lhe fugira aos olhos: a visão doeu-me mais que o telefone e o tapa nas costas.
O episódio em nada mudou a minha vida: não me ressenti, não me frustrei, não tive prejuízos psicológicos e não fiquei surdo com o telefone.
A narração é apenas para dizer que, como classificou a Folha de São Paulo, a ditadura não me foi branda: comigo ela foi absolutamente dura.
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