Pular para o conteúdo principal

Chovendo no alagado

Shot 010

“A teoria na prática pode ser diferente” é um jargão que previne o pesquisador de que a elaboração teórica deve ser testada exaustivamente até ser posta em prática.

O parlamentar quando elabora um projeto de lei deve atentar ao jargão, pois corre o risco de ver a lei daí resultante virar potoca.

O senador Waldemir Moka (PMDB-MS) é o autor do Projeto de Lei 580/2015, que com o rebuliço do sistema carcerário foi trazido à discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

O projeto escreve que “cada preso contribua com o Estado para custeio de suas despesas no estabelecimento prisional” e estabelece que “caso não possua recursos próprios para o ressarcimento, o preso deverá trabalhar para compensar esses custos”.

O apelo popular das letras é imenso. Não há quem, discorde. O portal do Senado abriu consulta pública ao texto e 97% das 26 mil manifestações foram favoráveis à medida.

Eu fui um dos 26 mil que me manifestei, mas a minha manifestação deve ir para a lata do lixo, juntamente com as demais 3% que tentaram demonstrar que o projeto é absolutamente desnecessário e a lei jamais será cumprida.

É desnecessário porque é um pleonasmo legal, ou seja, já existe o que ele pretende tornar lei, que é a própria Lei de Execução Penal em vigor, que regula o trabalho do preso no seu Capítulo III, mais especificamente na alínea d do § 1º do art. 29:

Shot 007

Jamais será cumprido porque a Lei da Execução Penal neste quesito, como em vários outros, não é cumprida e as razões para tal não estão na teoria elaborada, mas na prática do sistema, que é totalmente diferente do que foi teorizado.

1. A média do custo de um preso nos presídios estaduais é de R$ 1,5 mil ao mês e nos presídios federais chega a R$ 4,5 mil.

2. O sistema prisional brasileiro tem, em termos absolutos, a quarta população carcerária do mundo: são 622 mil presos. A primeira é a dos EUA (2,2 milhões), seguida pela da China (1,6 milhão) e a da Rússia (644 mil).

3. Diz-se que “rico não vai para a cadeia”. É verdade! Os dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária do Ministério da Justiça (2014) revelam o perfil do preso brasileiro: 98% são pobres, 86,6% sem curso superior, dos quais 50,5% apenas com o fundamental incompleto. E o arremate é cruel: 30% são jovens entre 18 e 24 anos.

4. Emerge como corolário do item 3 que 98% dos 622 mil encarcerados não têm condição de pagar os R$ 1,5 mil por mês a um presídio estadual e os R$ 4,5 mil aos federais, o que torna potoca a ei de Execução Penal e o projeto do senador Moka que a repete.

Na justificativa do projeto, o senador Moka argumenta que "somente transferindo para o preso o custo de sua manutenção no presídio é que o sistema penitenciário poderá melhorar e, ao mesmo tempo, por via oblíqua, proporcionar destinação de mais recursos para outras áreas, como os serviços públicos de saúde e educação".

O argumento é verdadeiro, mas infelizmente impraticável com o atual perfil do sistema, antes porque para que trabalhe é preciso que o preso e o sistema preencham requisitos que ambos não alcançam, principalmente a necessidade da existência de oferta do trabalho dentro do sistema ou pelo sistema assistido.

A precariedade do sistema, que também pela Lei da Execução Penal, “tem” que oferecer trabalho e estudo, faz com que apenas 16% dos presos trabalhem e só 9% deles estudem (dados de 2014) e as condições de trabalho daqueles 16% é tão precária e depauperada, que o produto financeiro disto não é suficiente sequer para custear os próprios insumos.

É uma pena que o Brasil não enfrente a questão carcerária com resolutividade como o fizeram os países baixos da Europa e da União Escandinava, que estão fechando prisões por falta de “clientes”.

É a causa do problema que se deve atacar, pois é no mínimo ingenuidade e no máximo estultícia, de repente esperteza mesmo, não conhecer as causas da delinquência e investir mais nas consequências do que na eliminação da essência.

O equívoco da abordagem se mostra a pino aos nossos olhos. A população carcerária do Brasil tem uma taxa vegetativa de crescimento de 5,3% ao ano e a nossa taxa de crescimento populacional, segundo o IBGE, está caindo: em 2001 foi de 1,4% e em 2016 foi de 0,8%.

Assim, sem fechar a torneira e continuar apenas enxugando o chão sempre molhado, chegará um tempo em que não terá pano de chão suficiente e teremos que construir um enorme muro em volta do Brasil.

E os pedreiros terão que trabalhar pelo lado de dentro.

Comentários

  1. os pobres cometem mais delitos porque tem menos a perder, não tem medo de terem que pagar indenização.
    se os estados unidos tem 2,2 milhões de presos, o brasil deveria ter pelo menos 1,5 milhões. Então teria que aumentar uns 150%.

    ResponderExcluir
  2. aqueles que não se esforçam para satisfazer as exigencias da escola, também não se esforçam para se satisfazer as exigencias do trabalho. A escola não tem aqauele poder magico, comparo com o exemplo do terno e gravata, aqueles que vestem terno e gravata são mais ricos do que os que usam roupas comuns, mas se vc der terno e gravata para pobres eh improvavel que eles enriqueçam. Penso que a falta de escola não é uma verdadeira causa, há correlação mas não causalidade.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Comentários em CAIXA ALTA são convertidos para minúsculas. Há um filtro que glosa termos indevidos, substituindo-os por asteriscos.

Postagens mais visitadas deste blog

Mateus, primeiro os teus

Convalescendo da implantação de um stent , o governador Simão Jatene (PSDB-PA) foi apanhado, ainda no Hospital do Coração (SP), na manhã de ontem (03), por uma desagradável matéria da “Folha de S. Paulo” reportando que “ao menos sete familiares, além da ex-mulher e da ex-cunhada” de Jatene exercem cargos de confiança no Executivo, no Legislativo e no Judiciário do Pará. A reportagem declara que, somados, os salários dos familiares do governador “ultrapassam R$ 100 mil mensais”. > Sem incidência de nepotismo As averiguações já foram matérias em blogs locais. Quando me foi perguntado se feriam a Súmula 13 do STF (nepotismo), opinei que não, o que foi agora ratificado pela reportagem da “Folha” que, ouvindo “especialistas” declarou que os “casos não se enquadram diretamente na súmula vinculante do STF”. Nenhum dos parentes ou afins relacionados pela “Folha” está a cargo de órgãos vinculados ao executivo estadual e a matéria não demonstra a existência de cargos ocupados, no Poder

O HIV em ação

A equipe do cientista russo Ivan Konstantinov arrebatou o primeiro lugar no “International Science and Engineering Visualization Challenge”, um concurso que premia imagens científicas da forma mais verossímeis e didáticas possíveis. Abaixo, a imagem em 3D do mortal vírus da Aids (HIV), em laranja, atacando uma célula do sistema imunológico, em cinza. A tática do HIV é se estabelecer dentro da célula, sem destruí-la. Na imagem abaixo foi feito um corte para mostrar o HIV já estabelecido no núcleo da célula imunológica, usando-a para se reproduzir, expelindo mais vírus que atacarão mais células imunológicas para torna-las hospedeiras, por isto o sistema imunológico do portador do HIV fica reduzido. As imagens foram retiradas do portal russo Visual Science .

Parsifal

Em uma noite de plenilúnio, às margens do Rio Tocantins, o lavrador pegou a lanterna e saiu correndo de casa à busca da parteira. Sua mãe, uma teúda mameluca, ficou vigiando a esposa que se contorcia com as dores do parto. Quando voltou com a parteira, o menino já chorava ao mundo. Não esperou: simplesmente nasceu. A parteira cortou o cordão umbilical e o jogou ao Rio Tocantins. Após os serviços de praxe de pós parto, a mãe de Ismael o chamou ao quarto para ver o filho. O lavrador entrou no quarto. A lamparina o deixou ver a criança ao peito da mãe: nascera Parsifal, pensou ele orgulhoso. O lavrador pegou uma cartucheira calibre vinte, carregou o cartucho ao cano, armou e saiu à porta. O Tocantins espreitava-lhe manteúdo. Apontou a mira da vinte à Lua e disparou: era assim que os caboclos do baixo Tocantins anunciavam a chegada de um homem à família.